domingo, março 04, 2007

Bancarrota IV

Só via meus pais em feriados, dias santos, desfiles militares, nas férias aonde íamos todos ao exterior e nas quartas e quintas aulas da sexta-feira. Passava o resto do meu tempo infernado dentro da escola tendo aula de um ou de outro professor militar, amigo do papai e o próprio ensinando francês. Era horrível seu sotaque puxado pelo “r” escarrado. A cada “r” mais um escarro. Tinha a impressão que sofria de tuberculose. E se bastasse ainda tinha as piadinhas dos meus colegas de classe.
Mas não há bandido que não veja pelo menos por uma vez o sol, lá fui eu concluir o 2º grau.
Mamãe morreu numa segunda-feira, de céu aberto onde todos demonstravam alguma felicidade, o câncer a alcançara e vencera sua frágil batalha. Era uma mulher excepcional. Que morrera assim que dei um beijo em sua testa já fria. Durante os anos de minha ignorância, cheguei a pensar que fora eu e aquele beijo que a matara. Sob o enterro não preciso detalhar. Umas centenas de pessoas foram dar-lhe o último adeus. Mas só eu fiquei ali até o vigia anunciar que estavam fechando o cemitério.
De lá para frente, bem... Entrei na faculdade de letras, meu pai se aposentou, meu irmão ficou sabendo que tinha cirrose crônica, sem antes não passar noites e mais noites na farra, chegar alcoolizado e acordar metade da vila militar; pra depois ganhar uma bolsa de estudos na França com um “jeitinho” do meu pai.
Um dia, na faculdade, assistia a uma aula onde todos riam do embaraço da monitora, menos eu... Vá, digamos que eu nem tanto. Assim é melhor. Eu estava apaixonado por ela. Ela era excepcional. Meu Deus, que mulher! Amor à primeira vista, entende? Não.
Compreendo.
Quando conheci Vírgilia, e uso esse nome falso porque nada melhor que relembrar Machado, eu estava pelo quarto ou quinto período. Já tinha saído com algumas garotas, mas não conseguira me apaixonar por nenhuma em especial. Em compensação sentia falta de ar e o coração bater quando encontrava minha monitora. Seria um típico caso de romance se não houvesse um problema: O namorado dela era meu professor de Teoria Literária.
E assim foi, a troca de olhares que não se respondiam e pairavam bem nos olhos do declamador de Camões a ponto de me esganar. Fazia de tudo para poder falar com ela, para dizer-lhe o que sentia, mas havia um montante de versos decassílabos na minha frente. E enquanto ensaiava algum um soneto, ele declamava em bom tom todo “Os Lusíadas”. Já não comia, pensava em versos, escrevia resenhas e agüentava a notas baixas. Não que fosse minha culpa, os heterônimos de minha vida conseguiam agüentar os estudos e Vírgilia. Mas o problema era o protótipo de poeta e professor - que tinha a matéria e a mulher para si - e que não me dava notas boas.
Se havia algo na faculdade que eu gostava eram os passeios que nós promovíamos. Íamos a tudo que é praia, passávamos o final de semana em casas de amigos. Foi justamente no período em que sai de casa, meu pai alugou pra mim um pequeno apartamento a algumas quadras da universidade, o velho também decidiu ir para uma casa de repouso. Não havia mais nada no exercito a ser feito e vivendo comigo, sem meu irmão e minha mãe ele não estava muito satisfeito em ficar parado, ou seja, o velho me botou pra fora.
Voltando ao passeio, eram nesses passeios que ficávamos até tarde falando baboseiras e bebendo altas misturas de cana. Num desses, Vírgilia foi e levou de encalço seu namorado. A tardezinha saíamos todos a praia onde ficávamos a contemplar o mar, e beber, beber tanto de não enxergar um palmo a nossa frente. Vírgilia escorrega no píer e cai dentro d’água, mas seu namorado nada pode fazer, nem se levantar. Está bêbado. Encontro ai a minha chance de mostra a ela que sou o homem de sua vida. Corro, a salvo e ela carinhosamente me beija... “Acorda, o mané, você não está vendo que ela está se afogando?” Eita... Corro desesperadamente, meu devaneio me deixa desfavorável em relação aos outros. Peraí! todo mundo está indo salvá-la?! Que safadeza é essa?! Eu gosto dela, entenderam? Ninguém ouviu. Corro, corro, corro. É minha chance de salvá-la. Pulo da borda para o mar. “Vou salvá-la, Vírgilia!” ainda tenho tempo para gritar. Vou direto para o mar, quer dizer, se não estivesse Vírgilia subindo, “Sai, Sai daí, Saiiii...” Puf! E caímos nós dois no mar. Mas, ‘Eu não sei nadar... Eu estou me afogando, meu Deus! Me salva, eu não sei nadar’. Quando abro os olhos, lá está Vírgilia a me beijar, bem quase é uma respiração boca-a-boca. “Seu tolinho, você queria se matar! Eu entendo que você fez isso pra me salvar, muito obrigada!” Esbocei um sorriso. Sentia os seios de Vírgilia sobre o meu corpo, tratei de pensar em outra coisa o mais rápido possível...
Se há algo que me dá raiva, é que me cutuquem. Negócio chato. Não aprovo, não me cutuquem por nada no mundo. Mas Vírgilia cutucando é outra coisa, que braços, delicados, ops! É áspero, e tem muito pêlo, nossa Vírgilia, não sabia que você era tão peluda assim... você já ouviu falar em depilação?