terça-feira, janeiro 30, 2007

Bancarrota II

A campainha toca, mas novamente ninguém atende. Para que continuar com isso? “Mon amour”, “Mon coeur”, murmuro encostado à porta do apartamento. Tenho vontade de me abaixar e ver pela frecha da porta, mau olho, ela apaga a luz do vestíbulo. Como eu posso ser tão previsível! É claro que ela vai abrir quando eu sair, que vai pensar em me seguir, que vai descer pelo elevador enquanto eu desço a escada de emergência, que vai me alcançar no saguão. Pois bem, seja como for, sigo ao elevador, ainda escuto a maçaneta da porta abrir assim que o elevador chega ao andar. Ainda tenho tempo de vê-la desfigurado em lágrimas e melada de chocolate, como ela é emotiva. Entro no elevador e antes que ele feche coloco a cabeça pra fora: “Adieu”. E sem mais desço.
Falo francês fluentemente, meu pai é francês, um français de araque que roda le monde desde os dois anos de idade, e que se gabava com sua nacionalidade soltando frases poéticas em seu idioma natal quando reclamava comigo e com meu irmão. Talvez a única vaidade que tivesse em vida além daquela careca-espelho lustrada que minha mãe tirava sarro a suas costas. Sabe como é, ele era militar. Não um simples militar, mas um general exemple como ele mesmo se intitulava quando esquecia o nome da medalha que recebera do presidente Figueiredo.
A verdade é que papai só subiu porque meu avô deu uma mãozinha, aliás, uma mãozinha não, o braço inteiro. Queria ver papai um dia, a ponto de se aposentar lustrando armas num quartel de quinta. Ai sim, ele teria um infarto.
Ele só era um burocrata, burocrata no exercito, burocrata nas aulas que dava, assim como meu avô. A única diferença entre eles era que meu avô, talvez pelos cargos diplomáticos a que assumira sabia falar com os outros, negociar e até renunciar as suas decisões quando era preciso. Meu pai não. Sempre fora um bronco, um bronco dos mais gentis e galantes possíveis, eu devo ter tirado dele essa facilidade de seduzir as mulheres. Não que ele tivesse muitas, só as que minha mãe não sabia.Deixo o carro estacionado, pego um desses ônibus noturnos, a claridade já se deixa viver no horizonte, a orla começa a se encher de gente. E ai que adormeço.